8 de Janeiro: Não é o momento de discutir anistia, diz futura presidente do STM

Para a ministra Maria Elizabeth Rocha, data marcada por atos golpistas 'é uma ferida aberta que vai custar para cicatrizar'

8 de Janeiro: Não é o momento de discutir anistia, diz futura presidente do STM
Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, ministra do Superior Tribunal Militar — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo/16-09-2021

Futura presidente do Superior Tribunal Militar (STM), a ministra Maria Elizabeth Rocha disse ao blog que é “precoce” a discussão de uma anistia aos envolvidos nos atos golpistas que culminaram com a invasão e a depredação da sede dos Três Poderes em Brasília, em 8 janeiro de 2023. Ela assume o comando do STM em 12 de março.

Para a ministra, indicada ao cargo pelo presidente Lula em 2006, o 8 de Janeiro é “uma ferida aberta que vai custar para cicatrizar”. “Isso vai ser como 64, vai incomodar ainda por muitas décadas”, disse. Ela é uma das cinco representantes civis do tribunal militar, formado por 15 magistrados – e a única mulher a integrá-lo desde a sua criação por Dom João VI, em 1808.

Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Como a senhora vê a possibilidade de anistia aos envolvidos no 8 de Janeiro? É uma discussão oportuna?

Acho que é simplesmente precoce, muito cedo para se falar em anistia. Ainda não tenho os dados para avaliar se ela é pertinente ou não, então, como diria Dom João VI, quando não se sabe o que fazer, o melhor é não se fazer nada. Em primeiro lugar, nem todos os réus ainda foram julgados, apenados – e outros ainda vão ser denunciados. Então é preciso aguardar para que todos os autores e perpetradores do 8 de Janeiro sejam efetivamente julgados para se cogitar que tipo de anistia, porque até tem um indulto presidencial. Existe um indulto que é dado e concedido todos os anos pelo presidente da República, mas precisa-se ver se a situação comporta até o indulto. Talvez não precise nem de anistia, mas vamos guardar.

Do ponto de vista pessoal, a senhora é particularmente contra ou a favor da anistia?

Vai depender de muitos fatos que ainda estão sendo apurados. É preciso ter uma visão completa do que foi o 8 de Janeiro, esclarecer tudo, para poder se falar nisso, porque a anistia é perdão, não é esquecimento. É preciso que se tenha em conta toda a cena do crime. Podemos dizer que, pelo visto, não foi só a depredação do Palácio do Planalto, do Supremo e do Congresso. Ela extrapolou a Praça dos Três Poderes, e aí é preciso ter consciência do que realmente poderia acontecer para se valorar a possibilidade ou não desse perdão. E essa consciência nós ainda não temos, porque depende inclusive da atuação do Procurador-Geral da República (a quem caberá apresentar a denúncia contra os indiciados pela Polícia Federal na trama golpista).

Por falar na PGR, os militares devem ser punidos, se ficar comprovado o envolvimento deles nos planos golpistas?

É claro, ninguém está acima da lei. Nenhum de nós está acima da lei, nem militar, nem ministro, nem magistrado, nem o próprio presidente da República.

Há desconforto nas Forças Armadas com os indiciamentos da Polícia Federal e o risco de condenação de militares de alta patente.

É um desconforto, sem dúvida nenhuma, porque a instituição acaba pagando pelo mal agir de determinados membros que a integram. Então realmente é desconfortável, do mesmo jeito que é desconfortável demais para o Poder Judiciário quando há suspeitas de corrupção de assessores ou de magistrados, não importa. É desconfortável para qualquer instituição, mas tem que enfrentar. Vai colocar sujeira debaixo do tapete? Não pode ser, não em uma República, não em uma democracia.

A senhora acha que o 8 de Janeiro já foi superado?

Não. Isso vai ser como 64, vai incomodar ainda por muitas décadas. O 8 de Janeiro é uma ferida aberta que vai custar para cicatrizar. É um fantasma que nos atormenta, e que nos obriga a ficarmos vigilantes e reflexivos, porque nós, aqueles que têm um pensamento de vanguarda, que querem que o país progrida, que querem reformar as instituições e distribuir a riqueza de uma forma igualitária, também andamos falhando muito. Os setores progressistas da sociedade têm falhado muito também com as camadas populares.

Dois anos depois, o que mais lhe marcou no 8 de Janeiro de 2023?

A destruição do Palácio do Planalto. Ter esfaqueado uma obra-prima de Di Cavalcanti (a obra “As mulatas” foi furada pelos extremistas e devolvida ao Planalto nesta semana, após ser restaurada), um patrimônio cultural, meu Deus, o que Di Cavalcanti fez para merecer tanta facada? Fico imaginando aquelas pessoas, mais do que tentarem dar um golpe de Estado, elas queriam destruir o Estado. Eles tomaram um ódio tamanho pelo Estado que a minha ideia era de aniquilação quando eu via aquela gente quebrando tudo.

Como assim?

Eles queriam aniquilar os direitos, porque talvez eles mesmos não tenham recebido essas benesses do Estado. A pessoa que quebrou o relógio (o relógio de Balthazar Martinot, também devolvido ao Planalto nesta semana após restauração) era um trabalhador (condenado no ano passado pelo STF a 17 anos de prisão). Fico me indagando o que levou um homem do povo que deve passar necessidades, a se alinhar a uma direita extremista que apoia as elites, que é contrária à qualquer distribuição de riqueza, e defender esse ideário com tanta raiva, ódio? Eu senti por parte daqueles cidadãos brasileiros um rancor contra o Estado.

O 8 de Janeiro deixou alguma lição para a sociedade brasileira?

Deu uma lição para todos nós, cidadãos brasileiros, de que a democracia é um processo continuado. É um pacto intergeracional, igual às Constituições, e que nós sempre devemos estar de olho no que acontece ao nosso redor, na República, nas arenas públicas de discussões, porque, como diz um grande amigo, Flávio Bierrenbach, que também foi ministro do STM, quando a democracia se despede, ela não costuma dizer adeus. Nós só nos damos conta de que ela se foi quando ela já partiu. É preciso que nós respeitemos o nosso país e que sempre ergamos a liberdade, porque a liberdade é perigosa. Se a gente pisca o olho, ela pode escapar dos nossos dedos.

A concentração das investigações nas mãos do ministro Alexandre de Moraes não é um voto de descrédito à Justiça Militar?

Não é descrédito, isso é uma regra processual penal que está sendo observada, desde o princípio. Tem que ser assim. O ministro Alexandre foi o juiz da causa desde o início, então é o correto juridicamente. Isso não impede que crimes militares conexos tenham sido cometidos, aí a competência é da Justiça Militar Federal para julgá-los.

Dá para confiar na Justiça Militar?

Eu tenho de acreditar na Justiça que eu integro e tenho que acreditar que ela busca votar com sabedoria, porque senão não faz sentido eu estar lá dentro e ainda mais presidi-la. Sei que nós somos acusados de corporativismo, em algumas vezes as nossas decisões claudicam. Mas as instituições são falhas. Eu acredito sinceramente que, num caso de uma gravidade tamanha, o Superior Tribunal Militar atuaria com isenção, se fosse o foro adequado para julgar (as investigações da trama golpista).

A senhora falou que, às vezes, algumas decisões claudicam. O caso do músico Evaldo Rosa, fuzilado por militares em 2019, é um desses?

Na minha visão, sim. Na visão da maioria do STM, não, mas eu entendi que 257 tiros não há como desclassificar de dolo para culpa (a reclassificação de homicídio doloso para culposo, sem a intenção de matar, fez a pena dos militares envolvidos no assassinato do músico desabar para três anos, livrando-os de cumprir a pena na prisão. Maria Elizabeth votou para manter as penas altas, mas ficou vencida). Não foi unânime, quatro ministros também divergiram, mas é como diz o ditado, cada juiz uma cabeça.

A imagem da Justiça Militar ficou arranhada após esse julgamento?

Saiu, claro. Agora a nossa imagem deveria ser enaltecida como na época do regime militar, onde a Justiça Militar quebrou a incomunicabilidade dos presos políticos com os seus advogados, porque o AI-5 havia proibido. As nossas decisões memoráveis nunca foram enaltecidas. A Justiça Militar sempre foi muito criticada exatamente porque eu acho que ainda pesa sobre a sociedade brasileira um ranço de 64. 64 é uma ferida aberta.

O caso Evaldo pode parar no STF?

Vejo espaço. Tem matérias constitucionais ali relevantíssimas e que o Supremo julgou recentemente. A questão não só do perfilamento racial, mas também das abordagens policiais não serem feitas com base em estereótipos. E ali foi um caso típico de estereótipo, um homem negro dirigindo o carro, numa região periférica do Rio de Janeiro, tudo isso foi fruto de preconceito. Tenho fé de que talvez o Supremo modifique o julgado. Se não modificar, ainda cabe a Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando falharem todas as instâncias da justiça pátria.

Qual é uma possível consequência para o Brasil nesse caso?

Uma recomendação e uma indenização, mas mais do que isso fica para a história. E, veja bem, a Justiça Militar da União, nem na época da ditadura militar, sofreu nenhuma recomendação ou sanção da Corte Interamericana. Vai sofrer agora em tempos democráticos se o Supremo não quiser se pronunciar. Vai ser uma lástima, que em pleno regime democrático, nós da Justiça Militar federal tenhamos uma recomendação negativa da Corte, que o Estado brasileiro seja obrigado a indenizar as viúvas – e uma recomendação em não ser racista.

Fonte: Globo.com