A 'são pauloneja': na metrópole que completa 471 anos, o 'r' do interior está de volta às conversas

Mudança no sotaque paulistano se relaciona com a migração e até mesmo com o crescimento da música sertaneja

A 'são pauloneja': na metrópole que completa 471 anos, o 'r' do interior está de volta às conversas
depositphotos.com / Ranimiro

Ao completar 471 anos hoje, São Paulo vive uma transformação na fala de parte dos seus 11,4 milhões de habitantes, principalmente nas periferias. O modo de se expressar meio “italianizado” vem dando lugar, sobretudo entre os mais jovens, a um “r” mais parecido com os pronunciados no interior. Uma mudança que tem a ver com a migração, a busca da identidade e até a ascensão da música sertaneja.

O rapper Rafael Gomes, de 32 anos, mais conhecido como MMoneis, vive no Grajaú e é um dos que adotaram esse jeito meio caipira de falar. Em uma música lançada recentemente, “Sorria, você está sendo filmado”, articula palavras como “sorte”, “orçamento” e “normal” com o “r retroflexo”. O fonema tem esse nome porque a língua dobra para trás ao vocalizá-lo, explicam os linguistas. Mas MMoneis sempre morou na Zona Sul.

— No “Graja” as pessoas falam assim, ninguém fala como “Faria Limer” — diverte-se. — Prestar atenção no sotaque é muito importante para criar as rimas no rap. Eu não apago meu jeito de falar o “r” na música, mas mantenho o feeling para ver onde essa sonoridade fica mais interessante. Na maior parte das vezes, esse som sai de maneira involuntária.

O sotaque foi mais percebido na campanha eleitoral para prefeito, pela voz de deputada Tabata Amaral (PSB). Filha de mãe baiana e de pai paraibano e natural da Vila Missionária, da periferia da Zona Sul, Tabata não disfarçou o jeito meio acaipirado de falar.

Mmoneis e Tabata são exemplos de um cenário mais amplo, segundo Livia Oushiro, professora de sociolinguística no Instituto de Estudos da Linguagem na Unicamp. O “r caipira", quando comparado ao o “r tepe”, que soa semelhante ao fonema da palavra “carambola” e virou sinônimo do português falado em regiões mais nobres como os Jardins e a Faria Lima — tem ganhado espaço. Não é a primeira vez que ele aparece.

No começo do século XX, aqui era roça. A cidade não tinha mais do que 100 mil habitantes. Só que esse “r” foi substituído, é possível que pela (influência da) imigração italiana e portuguesa. Agora, acontece esse retorno do “r retroflexo”, com as migrações do interior e também dos nordestinos, que passaram a chegar com muita intensidade entre os anos 1950 e 1960 — explica. — Uma das coisas que encontrei em minha pesquisa é que parte dos paulistas que mais falam o “r retroflexo” são os filhos de nordestinos. E essa mudança é uma coisa essencialmente paulista. O resto do Brasil fala muito parecido com os cariocas.

A professora explica que os filhos dos nordestinos adotaram a nova maneira porque assim conseguem se aproximar do registro vocal dos paulistanos. Também seria uma forma de fugir do preconceito. Para Thomas Daniel Finbow, professor do departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, falar desta forma é um indicativo de pertencimento.

— Além disso, cria uma divisão entre a periferia e o Centro. Os sotaques centrais preservam aspectos mais antigos — diz Thomas. — Aqui na USP, tenho percebido uma variação interessante, que é a pessoa que tem a tendência de pronunciar o “r” quase em um meio termo. É uma forma de evitar significados sociais.

Adaptação social

A fonoaudióloga Graziela Carvalho Ferrari explica que, quando transitamos entre diferentes espaços, situações ou classes socioeconômicas, são naturais adaptações.

— A comunicação é como uma roupa que a gente veste a depender do local onde estivermos — diz a especialista, que recebe pessoas em seu consultório buscando formas de suavizar o sotaque.

O resgate caipira, diz o músico e linguista da USP Luiz Tatit, reflete também o mercado fonográfico.

— Por muito tempo, a televisão exibia o que era considerado o sotaque “correto”, que seria o carioca. Não com exagero, mas como faz o Chico Buarque. Até pouco tempo, esse sotaque caipira não tinha prestígio — explica Tatit, compositor do grupo Rumo. — Isso mudou com o crescimento da música sertaneja.

O professor Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, da USP, lembra que as primeiras referências do “r retroflexo” podem remontar ao século XVI. Outras mudanças ocorreram com a interação dos portugueses com os indígenas, africanos e imigrantes italianos. Uma salada sonora que começou a ser preparada há 471 anos.

Fonte: Globo.com