Aluna de medicina diz à polícia que perdeu dinheiro de formandos ao fazer 'aplicações ruins' e admitiu que também ficou com uma parte
Alicia Dudy Muller, de 25 anos, é alvo de inquéritos e irá responder por apropriação indébita. Ela contou também que tentou recuperar o dinheiro dos formandos em medicina na USP fazendo apostas em lotérica.
A estudante de medicina Alicia Muller Veiga, de 25 anos, que é investigada por dar um golpe em colegas da faculdade, prestou depoimento na tarde desta quinta-feira (19) em São Paulo e, à polícia, confirmou que desviou os valores que seriam usados para a festa de formatura por entender que os recursos não estavam sendo bem administrados pela empresa contratada, mas fez "aplicações ruins" e acabou perdendo dinheiro.
No "desespero", ela diz que tentou recuperar o montante fazendo apostas em uma lotérica. E também admitiu que usou em benefício próprio uma parte das quantias para pagar despesas pessoais como aluguel de carro, apartamento e compra de eletrônicos. A estudante afirma ter agido sozinha, mas a namorada dela também será ouvida.
Segundo a Polícia Civil, Alicia vai ser indiciada por apropriação indébita, crime que tem previsão de pena de até quatro anos de reclusão, e vai responder em liberdade.
De acordo com o depoimento, Alicia tem renda mensal de cerca de R$ 4.500. Ela assumiu à polícia que a história que contou aos colegas da comissão de que teria investido o dinheiro da formatura em um fundo e sofrido um golpe era mentira.
Também de acordo com a polícia, a empresa ÁS Formaturas confirmou que transferiu quase R$ 1 milhão para a conta bancária da estudante, que era presidente da comissão de formatura da turma 106 da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
“Foram feitas diversas movimentações bancárias. Ela conseguiu a transferência da empresa responsável pela formatura para a conta dela", afirmou a delegada Zuleika Gonzalez Araujo, titular do 16º Distrito Policial.
A polícia disse também que, de acordo com os documentos apresentados pela ÁS, não há responsabilidade jurídica por parte da empresa.
"O contrato autorizava eles a fazerem essas transferências para os membros da formatura, para qualquer um dos representantes da comissão", explicou a delegada.
O g1 levantou que Alicia recebeu de R$ 3.000 de Auxílio Emergencial do governo federal. A policial explicou a situação da família da estudante.
Alicia Dudy Müller Veiga é acusada de golpe na USP — Foto: Reprodução
"Os nossos investigadores tiveram contato com a família. Trata-se de família humilde mesmo. Ela conseguiu ingressar no curso com muito esforço, a origem é humilde", disse.
"Inclusive, o valor pago por cada estudante para empresa na formatura era de R$ 12 mil. Os estudantes que comprovassem uma situação financeira econômica um pouco mais difícil pagariam R$ 6 mil. Ela Foi agraciada com essa possibilidade", completou.
Quem é a estudante
Natural do interior de São Paulo, Alicia Dudy Muller ingressou na faculdade de Medicina em 2018. Ela está no sexto ano do curso.
Alicia nasceu em Itararé, mas reside em um prédio na Vila Mariana, na Zona Sul da capital. Na plataforma Currículo Lattes, que reúne dados sobre estudantes e pesquisadores, ela informou ter feito o ensino médio na Escola Técnica Estadual Getúlio Vargas, na região do Ipiranga.
Em entrevista para a Rádio USP em fevereiro de 2018, ela afirmou que tinha passado no curso de Farmácia e até chegou a fazer a matrícula, mas desistiu e decidiu fazer cursinho por mais um ano para tentar entrar em Medicina.
A jovem é alvo de dois inquéritos policiais. São eles:
- O 16° DP investiga crime de apropriação indébita, relativo ao dinheiro da formatura;
- A Delegacia Especializada em Investigações Criminais (DEIC) de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, apura os crimes de estelionato e lavagem de dinheiro contra uma lotérica, cometidos em 2022.
A polícia já acreditava que o dinheiro usado pela estudante em apostas não pagas feitas no ano passado na lotérica da Zona Sul de São Paulo poderia ter sido desviado da festa de formatura de Medicina da Universidade de São Paulo(USP).
Os dados de transações bancárias foram analisados com a quebra do sigilo.
- Em abril de 2022, a suspeita fez quase R$ 20 mil em apostas na Lotofácil, todas pagas via PIX;
- Depois disso, passou a fazer várias apostas em grandes valores;
- No total, ela teria apostado R$ 461 mil;
- Em julho de 2022, a estudante teria solicitado R$ 891,5 mil em apostas;
- Após a operadora de caixa registrar R$ 193,8 mil em apostas, a gerente da lotérica questionou sobre o pagamento, e a suspeita disse que tinha realizado um agendamento da transferência;
- A estudante fez uma movimentação muito inferior, de R$ 891,53, na tentativa de fazer com que os funcionários da lotérica pensassem que seria o valor total de R$ 891,5 mil;
- Após breve discussão, a suspeita saiu da lotérica com cinco apostas de R$ 38,7 mil cada uma.
Em um vídeo gravado há quatro anos para o cursinho em que estudou, Alicia comentou sobre o processo de aprovação na Faculdade de Medicina da USP. O registro foi publicado em 14 de maio de 2018.
"É difícil descrever como é ter um sonho realizado, porque são anos batalhando. Mas agora é uma sensação de compensação. É todo tempo que você gasta fazendo simulado, estudando pós aula, parece que aquilo não foi nada comparado àquele dia que você vê seu nome na lista."
A denúncia do desvio milionário do fundo de formatura
Segundo o boletim de ocorrência sobre o caso do sumiço do dinheiro registrado por dois alunos, Alicia solicitou à empresa ÁS Formaturas — que seria responsável pela organização da festa — a transferência de R$ 927 mil em três parcelas:
- R$ 604 mil, para ser transferido para uma conta pessoal no seu nome;
- R$ 145 mil, que foram transferidos para uma conta em que o beneficiário não foi identificado;
- R$ 171 mil, que foram transferidos para uma conta em que o beneficiário não foi identificado.
Em nota, a ÁS negou ser a responsável pela organização da festa, como citado no boletim de ocorrência, e disse que "não se comprometeu com a realização ou produção de qualquer evento".
"A responsabilidade da ÁS no contrato limitava-se a arrecadar os valores dos formandos e transferir para a turma, além da realização da cobertura fotográfica", diz a nota.
Antes, Alicia afirmou ter aplicado R$ 800 mil em uma corretora de investimentos chamada Sentinel Bank, que é investigada pela Polícia Federal (PF) por suspeita de fazer parte de um golpe de falso investimento na Bolsa de Valores. Ela, no entanto, não teria apresentado comprovantes sobre a movimentação.
Segundo as investigações, o grupo prometia investimentos com lucro acima do mercado. Apesar disso, os valores entregues pelas vítimas não eram totalmente aplicados e resultavam em prejuízos.
O g1 tentou contato com Alicia, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.
Mensagem no Whatsapp
Em mensagem no grupo de WhatsApp da comissão organizadora, Alicia disse que aplicou o dinheiro em uma investidora e teria sido vítima de um golpe.
Na mensagem, ela afirma que usou parte do valor para pagar advogados por conta do suposto golpe. A estudante diz ainda que vai pedir ajuda da direção para pagar a festa. O caso é investigado pela polícia e pela direção da universidade.
"Escrevo para dizer que não temos dinheiro. Com toda dor, culpa e arrependimento que vocês podem imaginar. (...) Nosso dinheiro foi todo repassado para a Sentinel Bank, uma investidora que, no fim das contas, não se passava de um grande golpe e nunca mais retornou nem com o dinheiro investido, nem com os rendimentos."
E ela prossegue: "Vou ver com a diretoria da FMUSP se conseguimos ajuda deles".
Um print com a mensagem viralizou nas redes sociais, após repercussão do caso.
O que dizem os estudantes
Em entrevista ao g1, estudantes que pagaram a formatura relataram que estão se sentindo impotentes.
"Todo mundo está muito aflito, triste, apreensivo, até um pouco reativo com essa situação, porque a gente não esperava que uma colega fosse fazer isso pelas costas — investimentos, sacar dinheiro, valores altos", lamentou.
Uma das vítimas disse que os alunos estão sendo muito expostos e preferiu não se identificar. Ela contou que a suspeita "parecia ter uma vida normal, ser uma pessoa normal".
"Foi uma surpresa ruim que coloca muitas inseguranças em relação à realização do evento. A gente está falando tanto de um valor alto individualmente — porque, apesar de ser parcelado, todo mundo pagou em torno de R$ 300 por mês", contou.
De acordo com a comissão de formatura:
- A suspeita afirmou, por meio de mensagens no WhatsApp, que transferiu a quantia para uma conta pessoal;
- Ela alega ter aplicado R$ 800 mil em uma corretora de investimentos chamada Sentinel Bank, que a teria enganado e ficado com o dinheiro;
- A quantia restante teria sido utilizada para pagar advogados na tentativa de recuperar o dinheiro;
- O desvio foi constatado pela Comissão no dia 6 de janeiro deste ano, e uma das vítimas registrou a ocorrência na delegacia no dia 10.
"De toda a história contada pela [suspeita], o único fato que temos certeza é a transferência do montante guardado sob custódia da empresa ÁS Formaturas para uma conta pessoal dela. Ainda estamos averiguando em que contexto foram realizadas as transferências", disseram em nota os membros da comissão.
A ÁS Formaturas disse que "todas as transferências foram realizadas rigorosamente conforme estabelecido nas cláusulas contratuais" e que estão à disposição das autoridades para o fornecimento de documentos.
Em nota, a Faculdade de Medicina da USP afirmou que "os fatos estão sendo apurados, buscando-se identificar os responsáveis pela fraude e a Diretoria está apoiando na orientação aos alunos envolvidos".
O g1 procurou a Sentinel Bank, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.
Fonte: G1