Autocuidado ou procrastinação? Especialistas analisam trend do TikTok

O chamado ‘bed rotting’ tem conquistado adeptos e divulgadores nas redes sociais, mas prática pode se aproximar mais de uma fuga da realidade que um hábito saudável

Autocuidado ou procrastinação? Especialistas analisam trend do TikTok
Foto: LightFieldStudios/iStockphoto

Tem dias que sair da cama parece ser uma tarefa impossível. O colchão quentinho, o clima aconchegante e a preguiça que toma conta do corpo tornam tudo ainda mais complicado. Ficar uns minutinhos a mais curtindo o ócio pode ser bem tentador e, às vezes, não dá mesmo para resistir e acabamos nos rendendo aos “5 minutinhos” a mais. Mas esse comportamento esporádico tem ganhado outras nuances, principalmente no Tik Tok. Por lá, uma trend chamada “bed rotting” - que pode ser traduzida do inglês como “apodrecer na cama” - tem sido difundida e defendida como uma forma de autocuidado, principalmente por jovens da geração Z. 

Na prática, o bed rotting consiste em passar mais tempo na cama mexendo no celular, assistindo à televisão, usando o computador, comendo ou não fazendo nada. Tudo isso para distrair a mente dos problemas ou das tarefas. Uma ideia bem semelhante a de procrastinação, mas aqui com um ambiente definido: a cama. 

Embora tirar um tempinho para si mesmo não tenha nada de prejudicial, é preciso tomar cuidado com as ideias propagadas por essa nova “moda”. “Nos vídeos em que as pessoas pregam esse ‘bed rotting’ sempre aparecem camas bonitas com lençóis macios, ambientes agradáveis e isso é muito diferente da realidade da maioria das pessoas. No caso das imagens, há toda uma cena montada, é um material de entretenimento sendo produzido e vendido. A ideia é comprada pelas pessoas porque todo mundo gostaria de dormir naquela cama maravilhosa. Mas na realidade, o que está sendo proposto ali é uma fuga dos problemas”, observa o psicólogo Claudio Paixão, doutor em psicologia social e professor da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 

A neurologista Paulyane Gomes acrescenta que o “bed rotting” ou o comportamento de passar por longos períodos na cama após acordar trazem consequências tanto para a saúde mental quanto para a saúde física. Segundo ela, esses efeitos são causados porque há um impacto direto no ritmo circadiano - termo que denomina o ciclo biológico presente nos seres humanos e que regula  uma variedade de processos fisiológicos, comportamentais e bioquímicos ao longo do dia e da noite.  “Praticando o ‘bed rotting’, esse circuito pode entrar em desequilíbrio, uma vez que os jovens passam a ficar acordados até altas horas da madrugada, com os estímulos visuais emitidos pelos aparelhos eletrônicos e estendem a fase matinal permanecendo em ambientes escuros pela manhã, para procrastinar na cama”, afirma.

A desregulação desse ritmo afeta diretamente a qualidade do repouso. “Ficar horas na cama depois de acordar pode interferir no padrão de sono natural, dificultando a conciliação do sono na noite seguinte e contribuindo para distúrbios do sono a longo prazo”, explica. Alterações de humor, fadiga e até mesmo problemas metabólicos também podem ser desencadeados por esse desajuste. “E isso ainda pode causar um desequilíbrio emocional, uma vez que passar muito tempo na cama após acordar pode contribuir para sentimentos de apatia, tristeza e até depressão, especialmente se isso se tornar um padrão regular. Além disso, pode favorecer o isolamento social e a falta de interação, podendo levar a problemas emocionais, como depressão e ansiedade”, alerta Paulyane. 

A lista de consequências é ainda mais longa, já que a própria falta de movimento - vale lembrar que essa prática defende horas a fio na cama - é prejudicial. “Ela pode aumentar o risco de problemas cardiovasculares e de trombose venosa. Além disso, a imobilidade prolongada pode levar à rigidez das articulações e diminuição da amplitude de movimentos corporais. Outros problemas que podem ser desencadeados são os posturais, devido à falta de suporte adequado ao corpo e à coluna vertebral, podendo causar dores crônicas, como dor na região lombar e cervicalgias, que são dores localizadas na região do pescoço”, acrescenta. 

Passar muito tempo na cama pode também interferir nas próprias associações feitas pelo organismo em relação ao ambiente. “Quando você fica muito tempo acordado e está muito cansado, seu organismo pede que você durma mais e é bom fazer isso. Não tem problema, mas quando você fica repetindo esse comportamento por muito tempo, o seu cérebro associa a cama a outras atividades que não sejam o sono e isso tem um prejuízo direto na qualidade dele”, afirma Claudio Paixão. 

Só mais uns minutinhos

O hábito de ficar na cama após acordar não é de todo vilão. O comportamento pode ser uma boa pedida se feito com equilíbrio e com propósitos bem definidos que tornem a prática mais saudável. “Se eu tive uma noite de repouso bem dormida, acordo e vou voltar para o mundo desperto, posso me dar um tempo de calmamente ir passando de um estado para o outro sem pular da cama agitado e começar o dia de uma forma agitada”, sugere o psicólogo Claudio Paixão. Optar por se alongar ainda na cama, espreguiçar ou até mesmo ler algum livro, evitando o uso de telas e a experiência dos feeds infinitos das redes sociais são um bom caminho para aproveitar melhor o período de inércia. 

Em relação a quantidade de tempo, Paixão explica que alguns estudos vão apontar que o período necessário para se recuperar do adormecimento e se preparar para a vida normal é variável, mas que se a decisão for ficar na cama, é ideal não ultrapassar os 30 minutos. “Uma outra recomendação muito boa é se dedicar a fazer uma observação sobre os nossos sonhos. Vários estudos vão tentar explicar ou dizer da importância deles. Sidarta Ribeiro, neurocientista brasileiro, é um grande divulgador dessa visão de que o sonho, de alguma forma, funciona como um organizador de informações e as aparentes maluquices neles acabam gerando cenários hipotéticos que podem ajudar a resolver problemas que nos angustiam no dia a dia”, diz. 

A neurologista Paulyane Gomes defende, porém, que é melhor se levantar ao acordar. Esse comportamento deve estar aliado a outros hábitos saudáveis. “Manter uma rotina regular de sono, alimentação e atividade física pode ajudar a promover um ritmo circadiano saudável e melhorar o bem-estar geral. É importante manter um equilíbrio entre o descanso necessário e a atividade física para cultivar a promoção à saúde física, mental e cerebral”, finaliza. 

Por: O Tempo