'Os cuidadores estão enlouquecendo porque a sociedade os abandonou', diz psicóloga americana

Autora do livro 'Viagens a terras inimagináveis' explica como o cérebro humano se comporta diante de um paciente com demência

'Os cuidadores estão enlouquecendo porque a sociedade os abandonou', diz psicóloga americana
A psicóloga americana Dasha Kiper — Foto: Divulgação

A psicóloga americana Dasha Kiper atende cuidadores de pessoas com demência há 15 anos e notou que as famílias costumam reagir de forma parecida à intensificação de sintomas como perda de memória, repetição e paranoia. Os netos, cuidadores secundários, reclamam: “Minha mãe não entende que a vovó está agindo assim por causa da doença”. E os filhos, principais responsáveis pelo cuidado, rebatem: “Não, ela sempre foi assim”, referindo-se a características que parecem ter se acentuado, como teimosia ou carência. A psicóloga chama essa dinâmica de “cegueira diante da demência”: o cérebro do cuidador distorce os sintomas para concluir que o paciente não mudou — os defeitos que ele sempre teve é que se acentuaram.

Kiper introduz o conceito no livro “Viagens a terra inimagináveis”, recém-lançado pela Todavia, que mescla histórias de cuidadores (ofício a que ela própria se dedicou) com explicações sobre os mecanismos da mente que tornam a relação com o paciente tão desafiadora. Até nossos instintos sociais mais básicos, diz ela, nos deixam na mão diante de alguém cuja mente está se apagando. Em entrevista ao GLOBO, a autora descreveu os cuidadores como “vítimas invisíveis”, incentivou-os a cuidar do próprio cérebro e explicou por que a demência às vezes se parece com uma “relação abusiva”.

Qual é a principal queixa dos cuidadores?

Muita gente supõe que as principais questões sejam a perda e o luto, mas os cuidadores falam menos sobre como a pessoa com demência está mudando e mais sobre como eles próprios estão mudando, seus medos e preocupações, a deterioração de sua saúde mental. Eles se esforçam muito e sabem que precisam ser pacientes, flexíveis e calmos, mas nem sempre conseguem e sentem culpa e vergonha por isso. Dizem: “Quando minha mãe faz aquele comentário que me machuca, que ela repetiu a vida toda, eu perco a cabeça e começo a discutir”.

Você escreve que alguns de nossos instintos sociais se tornam contraproducentes na hora de lidar com a demência. Pode explicar?

Alguns instintos sociais ajudam e outros dificultam o trabalho dos cuidadores. Lidar com sintomas como perda de memória e paranoia, é estressante para o cérebro do cuidador, que percebe que ele e o paciente não compartilham mais da mesma realidade. Do ponto de vista evolutivo, o compartilhamento de uma experiência comum é essencial para os humanos. É por isso que muitos cuidadores não conseguem se controlar e discutem. Não é crueldade, é porque o cérebro social deles está confuso. É muito difícil aceitar que um cérebro está em uma realidade e o outro em outra.

O que explica o fenômeno que você chama de “cegueira diante da demência”?

Por vermos o mundo guiados por certas expectativas, nosso cérebro acaba distorcendo os sintomas da demência para “provar” que o paciente não mudou. Por exemplo: sua avó tem demência e acusa a sua mãe de nunca visitá-la. E sua mãe responde: “Eu estou aqui todos os dias”. Sua mãe vai sentir, e com razão, que sua avó nunca está satisfeita e reclamar: “ela sempre foi assim, sempre me criticou”. O problema é a perda de memória ou sua avó é assim mesmo? Não há uma resposta única. Pode ser um sintoma da doença e, ao mesmo tempo, sua mãe pode estar certa. Não é porque alguém tem demência que a personalidade dele não existe mais.

Você afirma que “o ponto cego mais suscetível de um cuidador é uma velha ferida familiar”.

Em inglês, usamos o termo “gaslighting" quando uma pessoa nega a realidade que a outra está vivendo. Voltemos ao exemplo da mulher com demência que reclama que a filha nunca a visita, sendo que ela está lá o tempo todo. Não é culpa dela, mas muitos pacientes com demência fazem isso. Dizem: “você nunca fez isso”, “eu nunca disse aquilo”. A negação constante da realidade e dos esforços e sacrifícios dos cuidadores faz com que eles se sintam invisíveis, como se estivessem numa relação abusiva. No caso de cuidadores que sempre se sentiram rejeitados e insuficientes, essa situação intensifica velhas dinâmicas familiares nada saudáveis.

O que fazer nesses casos?

Reconhecer que isso acontece. É importante dizer: “não é sua culpa e não é culpa da sua mãe, mas você está numa relação abusiva e é por isso está sofrendo”. Traz alívio aos cuidadores saber que eles não estão loucos nem são pessoas ruins, só estão numa situação que não é saudável.

Como resistir à tentação de discutir com pacientes com demência?

Nosso cérebro é irremediavelmente social: se estamos numa situação em que uma pessoa não nos reconhece, não compartilha a nossa realidade, discussões acontecem. Prometer não discutir não é realista, é como prometer comer saudável em 100% das refeições e nunca faltar na academia. Os cuidadores têm direito a alguns deslizes. A melhor maneira de garantir que eles não discutam é fazê-los se sentir valorizados. Eles discutem porque se sentem invisíveis. Muitas das discussões são algo como: “veja o que eu estou fazendo”, “reconheça”, “entenda”.

Como a saúde dos cuidadores é impactada por esse trabalho?

Os cuidadores são vítimas invisíveis. Segundo as pesquisas, os índices de depressão, ansiedade e burnout são muito maiores entre eles. Cuidadores têm maior propensão a desenvolver demência por causa do estresse crônico a que estão submetidos. Consumidos pelas necessidades de outra pessoa, eles tendem a se negligenciar: não vão ao médico, às vezes acabam bebendo demais, param de se exercitar ou de comer direito. É um trabalho solitário e muitas vezes não pago. Muitos deles perdem suas conexões sociais porque a família e os amigos desaparecem. Eles estão enlouquecendo porque a sociedade os abandonou. O cuidado não deve ser pensando como responsabilidade de uma pessoa só, mas de todos.

Como os cuidadores podem se cuidar?

Eles precisam proteger o cérebro com alimentação saudável, exercícios físicos e conexões sociais. Isso não quer dizer ir a festas e se tornar extrovertido se você não é, mas ter relações significativas e uma identidade para além do trabalho de cuidador.

Pacientes com demência às vezes ficam mais afetuosos. Por que isso acontece?

A demência diminui as inibições, o que em alguns casos pode levar a comportamentos inapropriados. O Sr. Kessler, de quem eu cuidei, ficou muito mais afetuoso, para a surpresa do filho. Ele passou a gostar mais de ficar de mãos dadas e de abraços. Mesmo sem entender que têm demência, os pacientes se sentem mais vulneráveis. E nós somos mamíferos, buscamos conforto quando estamos vulneráreis. Essa diminuição das inibições combinada com o desejo de conforto é o que torna muitos pacientes mais afetuosos.

Por: O Globo